domingo, 29 de agosto de 2010

O poder do amor

O viciado lutava contra seu vício há algum tempo. Essa é uma batalha difícil. Todo vício tem relação com o prazer – um prazer nocivo, é verdade, mas quando este é o único prazer que o ser humano tem em sua vida, este agarra-se àquele com unhas e dentes.

O campo de batalha naquele dia era a igreja. Sua mãe o convencera a assistir um culto, sem compromisso. “Se você gostar, você continua. Se não gostar, não precisa voltar nunca mais!” - disse ela, crente (como todo crente) na infalibilidade do amor Divino.

“Só Deus sabe como eu já tentei me livrar desse vício. Algumas pessoas me veem como uma pessoa sem escrúpulos, outras me veem como uma pessoa preguiçosa, outras ainda olham para mim e veem uma pessoa fraca. Mas é certo que nenhuma delas me respeita nem conhece minha história, meus sofrimentos. Como todo viciado, não estou nesse barco por vontade própria. Sou vítima, preciso de ajuda. Mas ainda sim, sou um ser humano que precisa ser amado como todos os outros.” - pensava o viciado no banco do passageiro.

A igrejinha ficava num bairro distante, esquecido pelo reino dos homens e, ao que tudo indicava, pelo reino dos céus também. As ruas eram de terra e, por onde o carro passava, levantava uma nuvem de poeira vermelha que cegava e sufocava os que viajavam à pé.

O dia estava bonito, o céu azul tinha apenas o sol como compania. Fazia muito calor.

O local era simples, um salãozinho retangular pequenino, dividido em dois ambientes. A porta de entrada ficava ali pelo meio do salão, na parede da esquerda. O púpito ficava na parte frontal, o miolo era preenchido por bancos daqueles de igreja mesmo, de madeira e nítidamente feitos à mão de maneira artesanal. No fundinho do salão ficava a copa e o banheiro.

Mesmo nesta igrejinha tão humilde, o viciado não pôde deixar de sentir a presença Dele. “É incrível o poder de Deus. Essas pessoas gastam o que não têm para manter esse pequeno local onde tentam – mesmo que engatinhando – praticar o amor e os ensinamentos de Jesus. Talvez eu possa encontrar, enfim, neste lugar, a cura pro meu vício...” - pensava o viciado ao sentar-se num dos bancos da última fileira. Um grupinho que chegava animado, composto por três pessoas, interrompeu seus pensamentos:

    • Paz de Deus irmão – disse-lhe o senhorzinho, de maneira altiva, ao estender-lhe a mão.

    • Paz de Deus – respondeu o viciado, cumprimentando o senhorzinho.

    • Paz de Deus irmão – disse-lhe o rapaz que acompanhava o senhorzinho (e que tinha algo em torno de 32 anos), de forma desconfiada, ao estender-lhe a mão.

    • Paz de Deus irmão – respondeu o viciado cumprimentando o outro.

    • Paz de Deus irmão – disse-lhe a moça que acompanhava o senhorzinho, com um brilho diferente nos olhos (brilho que o viciado conhecia muito bem) ao estender-lhe a mão.

    • Paz de Deus irmã – respondeu o viciado, com o mesmo brilho nos olhos. A conexão estava feita.

O senhorzinho dirigiu-se ao púpito. O rapaz que o acompanhava sentou num dos bancos da frente. A moça que os acompanhava sentou no outro banco da última fileira, ao lado do viciado, separada dele pelo corredor central.

Enquanto o senhorzinho dirigia o culto, pregava e cantava lá na frente, a moça e o viciado trocavam olhares e sorrisos na última fileira. A moça vestia uma blusinha e uma saia bastante conservadoras, que não revelavam sua pele nem suas curvas. Na cabeça, o véu cobria-lhe os cabelos. Era uma típica moça evangélica.

“Sempre ouvi dizer que o amor cura todos os males. Acho que Deus está a mandar-me uma mensagem!” - o viciado pensava. Via, enfim, uma luz no fim do túnel.

A moça levantou-se e andou em direção à copa. Ao passar pelo viciado, deixou cair em seu colo um bilhetinho, discretamente. Longos três minutos passaram-se até que o viciado se levantasse e se dirigisse também à copa. Entrou.

Antes que pudesse dizer alguma coisa, a moça beijou-lhe a boca. Ao beijar, encostava o seu corpo no do viciado de forma provocante. Desabotoou-lhe as calças e o viciado, ao observar as mãos ágeis da moça trabalhando com urgência, notou pela primeira vez sua aliança em sua mão esquerda.

Ele perdeu o controle. Apertou a moça com força, no ponto certo para evitar a dor e estimular o desejo. Beijou sua boca, seu pescoço. Com a mesma intensidade virou o corpo da moça, que apoiou as mãos na pia. (…)

O viciado perdera mais uma batalha.


Robson Ribeiro

sábado, 28 de agosto de 2010

Baseado e fatos reais

Eram onze e meia da manhã. O sol escaldante do verão estava especialmente quente naquele dia. À poucos metros adiante o mormaço era visível – subia do chão cimentado, arenoso e pedregoso como um fantasma. O rapaz-quase-senhor já tinha desistido do colete azul escuro, mas não podia se desfazer da camisa – não naquele lugar.

O suor escorria-lhe pelo rosto como as cataratas do Iguaçu. Sua camisa branca, úmida, estava quase transparente e suas pernas já estavam – há muito – assadas de tanto caminhar, subindo e descendo o morro a pé.

As vielas eram tão estreitas que ele tinha a nítida impressão de que os barracos se fechavam envolvendo-o num abraço indesejado. O cinza e o vermelho barro das casas inacabadas davam o tom da paisagem. Crianças dividiam o pouco espaço disponível para brincadeiras com cachorros magrelas – tanto quanto as crianças – e com o lixo – mais numerosos que a criançada e a cachorrada juntas.

O rapaz-quase-senhor estava sentado numa escadinha torta que parecia não ter fim. Tentava recarregar alguma energia.

“Caramba, eu tô cansado. Tô com sede. Tô com fome. E tô com medo. Um medo da porra! Se aquela senhora não tivesse me abrigado em sua casa, talvez eu estivesse morto. Talvez aqueles tiros não tivessem subido, mas me acertado em cheio!” - pensou.

À poucos metros dali, a notícia chegou aos ouvidos do chefe, o dono da boca:

    • Chefe, tem um cara estranho na bocada, fazendo um monte de perguntas pro pessoal.

    • Quem é o cara?

    • Sei não, nunca foi visto por aqui antes!

    • Porra! Traz esse cara pra cá, porra! Qualéqueé mermão! Ninguém pode chegar assim no meu pedaço não!

    • Tá certo! Vou lá buscar o viado!

A bordoada chegou sem aviso. Ele sabia que o rapaz gritava, mas não podia ouvir muita coisa pois o ouvido atingido zumbia alto. Foi pego pelo braço e levado – quase arrastado – escada acima. Quis perguntar pra onde iam, mas algo lhe disse que não era uma boa idéia. Ele não pode evitar. Urinou-se de medo.

Foi empurrado pra dentro de uma casa que ficava numa viela sem saída. Logo na sala principal havia uma enorme mesa de madeira nobre, onde trabalhavam cinco crianças embalando cocaína. Ele podia ouvir os gritos da sexta criança, que apanhava num cômodo adjacente e que tentava em vão convencer o seu agressor:

    • Eu juro tio! Eu não cheirei! Eu juro...

O rapaz-quase-senhor foi levado à presença do chefe num dos quartos da casa. Este estava sentado atrás d'uma mesa de escritório e fumava um baseado.

    • Iaê cumpádi! Qualé a tua? Fiquei sabendo que tu anda fazendo um monte de pergunta pro meu povo aqui...

    • Desculpa senhor, eu só estou fazendo o meu trabalho...

    • Aí, senhor é o caralho! Senhor tá no céu, e isso aqui é o inferno! Tu é polícia rapá?

    • Não senhor.

As pernas do rapaz-quase-senhor tremiam. Suas mãos tremiam. Sua voz tremia. Não pôde evitar – urinou-se novamente.

    • Iaí, rapá! Mijando na minha sala, qualé? Fala aí, por que que tu anda fazendo tanta pergunta por aí?

O rapaz-quase-senhor não conseguiu responder. Entregou o seu crachá pro chefe, que leu em voz alta: “IBGÉ”.

    • Pô, por que tu não falou antes? Eu vi esse lance de IBGÉ na tevê! Ô Carniça, traz lá a minha filha pra responder as perguntas do doutor!

A menina ainda soluçava, mas estava feliz por ter escapado no meio da surra.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Auto-análise

O rapaz entrou no consultório inseguro. Era sua primeira vez. O ambiente tentava ser agradável – era amplo e tinha grandes janelas por onde entrava uma boa quantidade de luz solar. Os muitos vazos aliados às pinturas nas paredes davam um colorido aconchegante e os móveis eram de madeira maciça, imponentes e confortáveis.

Mas aquela coisa por trás dos nervos ópticos insistia em permanecer alerta.

    • Pode sentar-se. Se prefirir, pode se deitar também - disse-lhe o doutor.

    • Obrigado.

O rapaz sentou. Ainda sentia-se um tanto desconfortável.

    • Então, o que lhe traz aqui?

    • Eu...hum...er...preciso de ajuda.

    • Entendo. Então, pode começar. Fale, abra-se comigo.

    • Eu não sei exatamente sobre o que falar...

    • Que tal começar falando sobre a tua família?

    • Hum...pode ser. Na verdade eu não tenho problemas com a minha família. É claro que todos nós somos um tanto problemáticos mas, apesar de tudo, eu sei que cada um só quer o bem um do outro – à sua maneira – então eu procuro entender o ponto de vista alheio e não me deixo magoar com o comportamento deles...

    • Entendo. E quanto aos seus relacionamentos amorosos? Você já teve alguns, não?

    • Sim, é claro. Também não tenho problemas quanto a isso. Lidar com a rejeição é uma luta constante, mas tenho aprendido muito com isso. Ficou mais fácil quando descobri que primeiro preciso amar a mim mesmo. Tenho tentado me seduzir. É uma paquera gostosa essa, sou a pessoa mais interessante que já vi. Olhar pra dentro sempre traz uma nova descoberta...

    • Entendo. E sobre...

    • Será que eu posso tomar um pouco d'água? Minha garganta anda muito seca ultimamente...

    • Mas é claro. Fique à vontade.

O rapaz se levantou e caminhou, um pouco mais confiante, em direção à copa. Tomou dois copos d'água e mesmo assim continuou engolindo seco. “É. O problema não é falta d'água. Eu já sabia. Espero que o doutor possa me ajudar...” pensou.

    • Podemos continuar?

    • Sim.

    • E quanto aos seus amigos? Sua relação com eles é boa?

    • Sim. Eles também não têm culpa...

    • Culpa?

    • Sim. Na verdade são todos vítimas. Não consigo deixar de olhar pra eles – e pra toda sociedade – e ver um bando de formiguinhas, num grande formigueiro (ou vespeiro?), programadas pra cavar, fazer ninho, pegar folhinha, guardar folhinha, comer um pouco (às vezes) e trabalhar pra rainha (sempre). Estão todos vendados. Dopados. Acham que o mundo é mesmo feito de sombras – não veem a imagem verdadeira. Mesmo o senhor, doutor, me parece uma formiguinha.

    • Entendo. Se você não tem problemas, então como acha que eu posso te ajudar?

    • O senhor não pode. Não da maneira que pensa poder.

    • Como, então?

    • Gostaria que o senhor me internasse num hospício.

    • Hospício?

    • É. Eu não estou no padrão do formigueiro. Sou anormal. O senhor conhece algum que possa viver em sociedade?

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Escrita Divina

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quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O clímax da Criação

Não quero falar sobre como começou aquela noite. Levaria muito tempo para descrever cada capítulo dos 10 anos que nos levaram àquele momento. Não. Desta vez quero falar apenas daquele momento. Registrar cada respiração, cada movimento, cada batida do coração – escrevo no singular porque sempre fomos um só, duas metades do mesmo ser.

O quarto estava escuro. Pela janela entreaberta um tímido raio de luz adentrava – era a Lua testemunhando o momento máximo do ser humano. O clímax de sua existência. A razão pela qual foi criado. Sempre que presenciava um momento como aquele, a Lua compreendia o motivo da criação, e se compadecia da triste realidade do Criador – existir só. Ser uno, completo em si mesmo, sem nada que pudesse lhe fazer falta para que pudesse sentir alegria na conquista.

Ela vestia branco.
Eu também.

Pedi que ela fechasse os olhos por um instante. Aproximei-me por traz, afastei seu cabelo (longo, castanho e cacheado) e o depositei, gentilmente, sobre seu ombro direito. Seu pescoço revelou-se. Apesar de lindo, longo, tive de abaixar a cabeça alguns centímetros antes de poder beijá-lo. Um beijo leve, flutuante. Meus lábios, grossos, mal tocaram-lhe a pele – na verdade acho que tocaram apenas os pêlos eriçados ao pé da nuca.

Pude sentir, uma vez mais naquela noite, seu perfume. Aroma floral. Flor-de-lis.
Minhas mãos envolveram, quase sem toque, teus ombros desnudos (ela usava um vestido de alcinhas). Não resisti, dei-lhe uma leve mordiscada no pescoço e senti seus pêlos dos ombros – e certamente do corpo todo – eriçarem-se também.

Nunca pensei que pudesse ser tão generoso. Eu controlava meu pulso, meu ímpeto com a mesma eficiência que um maestro dirigindo uma orquestra. A diferença é que para mim não houve partitura ou ensaios. A música foi composta naquele momento.

Ela então se virou, olhou-me fundo nos olhos como se pudesse me ler, me decifrar. Como se pudesse ver através deles tudo aquilo que eu realmente sou. De fato ela podia.

Ainda me olhando daquela forma ela foi desabotoando, sem pressa, cada um dos botões da minha camisa. Quando terminou, colocou ambas as mãos sobre o meu peito. As deixou ali alguns segundos – talvez para certificar-se de que meu coração ainda batia.

Então movimentou as mãos em sentido contrário, suave, quase sem toque também, e assim despiu meu tórax. Ela também não resistiu e me deu uma leve mordiscada no peito (que deixou todos os pêlos do meu corpo em estado de alerta) seguida de um beijo no pescoço e assim, beijando, subiu nas pontas dos pés – como uma bailarina – até que seus lábios encontrassem os meus.

De repente, um sorriso serelepe. Sem nenhum outro aviso, ela me empurrou. Caí de costas na cama. Ela tirou meus sapatos. Subiu mais um pouco. Tirou o cinto. Tirou a calça – e com o mesmo movimento, todo o resto. Eu fiquei nu.

Fazendo aquele movimento com os dedos indicador e médio, que simula uma “formiguinha”, ela percorreu todo o meu corpo. Dos pés até os lábios, onde depositou o dedo indicador como se pudesse sentir cada palavra que eu não encontrava. Não era preciso falar nada.

Ela então ficou de pé ao lado da cama.
Com apenas dois movimentos ela se despiu por completo.
Então ela deitou-se do meu lado, colocou a cabeça no peito e disse:

    • Eu te amo.

    • Eu te amo – respondi.

    • Estou com medo.

    • Eu também – concordei.

    • Nunca me senti tão feliz.

    • Nem eu.

E estas foram nossas únicas palavras naquela noite.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Cabeça cheia, oficina do Diabo

Quando eu era jovem, pensava.

Pensava que podia mudar o mundo,

ajudar o mendigo 'sujismundo',

que o amor era algo profundo.


Quando eu era jovem, pensava.

pensava que tudo está errado,

que Jesus nos deixou um legado,

que o ser-humano está inacabado.


Então fiquei velho, de corpo e alma.

O corpo não importa, mas a alma preocupa.

As vezes fico triste mas a cerveja acalma.


As vezes quero fazer algo mas vou pra sinuca.

No trabalho ando tão concentrado, estressado,

que nem percebo: cabeça cheia é a oficina do Diabo.


Robson Ribeiro

Cadê Eu?

Minha boca amarga o teu silêncio.

O teu silêncio silencia nossa relação.

Uma relação em que o teu é o meu silêncio,

como todo o resto, pois dividimos o coração.


A menos que não seja mais assim,

a menos que tenha separado-se enfim.

Se for este o caso, um novo universo se criou,

pois separação assim apenas o Big Bang presenciou.


Entre modos, não acredito nesta possibilidade.

Nada poderá mudar a minha convicção sobre nós.

Nem mesmo a sua desmedida incredulidade, ou vontade.


Já falei sobre isso, já escrevi sobre todos os nossos nós.

Somos uma só existência, um único ser, uma só entidade.

Em nossa língua não existe eu, tu, ele, ela, eles ou vós.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A moça e o precipício

  • Por que me sinto assim?

Sob um lindo céu azulado a moça falava com seu príncipe encantado. Como se soubesse desde o início ele tentou alertá-la.Disse o precipício:


  • Sua resposta não está em mim.

  • Mas estou muito atraída...

  • Atração rima com traição.

  • Você roubaria minha vida?

  • Acontece em toda relação...

  • Não me importo. Você é lindo!

  • Você não deveria chegar tão perto...

  • Não posso evitar, está me consumindo.

  • Depois não diga que não fui sincero.

A moça pulou.


Robson Ribeiro