sábado, 28 de agosto de 2010

Baseado e fatos reais

Eram onze e meia da manhã. O sol escaldante do verão estava especialmente quente naquele dia. À poucos metros adiante o mormaço era visível – subia do chão cimentado, arenoso e pedregoso como um fantasma. O rapaz-quase-senhor já tinha desistido do colete azul escuro, mas não podia se desfazer da camisa – não naquele lugar.

O suor escorria-lhe pelo rosto como as cataratas do Iguaçu. Sua camisa branca, úmida, estava quase transparente e suas pernas já estavam – há muito – assadas de tanto caminhar, subindo e descendo o morro a pé.

As vielas eram tão estreitas que ele tinha a nítida impressão de que os barracos se fechavam envolvendo-o num abraço indesejado. O cinza e o vermelho barro das casas inacabadas davam o tom da paisagem. Crianças dividiam o pouco espaço disponível para brincadeiras com cachorros magrelas – tanto quanto as crianças – e com o lixo – mais numerosos que a criançada e a cachorrada juntas.

O rapaz-quase-senhor estava sentado numa escadinha torta que parecia não ter fim. Tentava recarregar alguma energia.

“Caramba, eu tô cansado. Tô com sede. Tô com fome. E tô com medo. Um medo da porra! Se aquela senhora não tivesse me abrigado em sua casa, talvez eu estivesse morto. Talvez aqueles tiros não tivessem subido, mas me acertado em cheio!” - pensou.

À poucos metros dali, a notícia chegou aos ouvidos do chefe, o dono da boca:

    • Chefe, tem um cara estranho na bocada, fazendo um monte de perguntas pro pessoal.

    • Quem é o cara?

    • Sei não, nunca foi visto por aqui antes!

    • Porra! Traz esse cara pra cá, porra! Qualéqueé mermão! Ninguém pode chegar assim no meu pedaço não!

    • Tá certo! Vou lá buscar o viado!

A bordoada chegou sem aviso. Ele sabia que o rapaz gritava, mas não podia ouvir muita coisa pois o ouvido atingido zumbia alto. Foi pego pelo braço e levado – quase arrastado – escada acima. Quis perguntar pra onde iam, mas algo lhe disse que não era uma boa idéia. Ele não pode evitar. Urinou-se de medo.

Foi empurrado pra dentro de uma casa que ficava numa viela sem saída. Logo na sala principal havia uma enorme mesa de madeira nobre, onde trabalhavam cinco crianças embalando cocaína. Ele podia ouvir os gritos da sexta criança, que apanhava num cômodo adjacente e que tentava em vão convencer o seu agressor:

    • Eu juro tio! Eu não cheirei! Eu juro...

O rapaz-quase-senhor foi levado à presença do chefe num dos quartos da casa. Este estava sentado atrás d'uma mesa de escritório e fumava um baseado.

    • Iaê cumpádi! Qualé a tua? Fiquei sabendo que tu anda fazendo um monte de pergunta pro meu povo aqui...

    • Desculpa senhor, eu só estou fazendo o meu trabalho...

    • Aí, senhor é o caralho! Senhor tá no céu, e isso aqui é o inferno! Tu é polícia rapá?

    • Não senhor.

As pernas do rapaz-quase-senhor tremiam. Suas mãos tremiam. Sua voz tremia. Não pôde evitar – urinou-se novamente.

    • Iaí, rapá! Mijando na minha sala, qualé? Fala aí, por que que tu anda fazendo tanta pergunta por aí?

O rapaz-quase-senhor não conseguiu responder. Entregou o seu crachá pro chefe, que leu em voz alta: “IBGÉ”.

    • Pô, por que tu não falou antes? Eu vi esse lance de IBGÉ na tevê! Ô Carniça, traz lá a minha filha pra responder as perguntas do doutor!

A menina ainda soluçava, mas estava feliz por ter escapado no meio da surra.

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